Simondon e a Individuação (I)

No curso sobre a Arqueologia da Cibercultura, em andamento no PPGC da UERJ neste semestre, Gilbert Simondon é um pensador-chave não apenas devido às idéias que expressa no clássico “Du Mode d’Existence des Objets Techniques” (largamento citado pelo colega André Lemos em seu livro “Cibercultura”).  Seu pensamento sobre a técnica – bem como o impacto que teve no cenário cultural posterior, em termos de filosofia e compreensão da sociedade tecnológica – só pode ser inteiramente apreendido à luz de um contexto mais amplo, do qual o citado livro constituía apenas uma parte.  De fato, “Du Mode d’Existence des Objets Techniques” foi escrito como complemento da gigantesca Tese de Doutorado que portava o título “L’Individuation à la Lumiere des Notions de Forme et d’Information”.  Essa tese foi publicada em dois volumes separados: “L’individu et sa Genese Physico-Biologique” (1964) e, somente muitos anos depois, “L’Individuation Psychique et Collective” (1989).  As inovadoras teses de Simondon sobre o processo de individuação são fundamentais para se apreender em profundidade suas proposições a respeito do modo de existência dos objetos técnicos.  Mas o que é “processo de individuação”?  Grosso modo, trata-se de uma antiga questão filosófica, que diz respeito ao modo como qualquer coisa (e aqui se deve compreender mesmo “qualquer coisa”, de um organismo animal a uma máquina ou ser humano) vem à luz.  Ou seja, como um ente se constitui como indivíduo a partir de um fundo pré-individual.  Pensemos na constituição de um ser humano: um óvulo é fecundado, acontece a gestação, nasce o bebê, e ao longo de toda vida esse sujeito atravessa um processo de individuação (ou seja, tornar-se uma entidade separada, ainda que em constante intercâmbio, com o mundo que o cerca).  Uma estátua trabalhada por um artesão também experimenta um processo de individuação, gestado nos golpes do cinzel que molda a matéria da qual a obra irá destacar-se (mármore, madeira etc.).  Antes de compreender em profundidade como se dá tal processo, Simondon precisa desfazer uma série de equívocos teóricos e filosóficos que levaram a sérias distorções sobre a real natureza da individuação.

Tradicionalmente, existem duas maneiras de se abordar a realidade do ser como indivíduo: substancialista e hilemórfica (o encontro de uma forma e de uma matéria).  O problema de todas as duas é que ambas supõem um princípio de individuação anterior a ele mesmo, suscetível de explicá-lo, produzi-lo ou conduzi-lo.  A doutrina hilemórfica (de “hilós”, matéria e “morfos”, forma), de longa sobrevida desde sua origem na filosofia grega, sugere a gênese do indivíduo através do encontro de uma forma pré-dada com uma substância também já existente.  Mas se essa forma já existia desde sempre (por exemplo, em um hipotético céu platônico das idéias), ela seria algo de anterior ao próprio processo de individuação e, portanto, já um “indivíduo”.

Desse modo, outra maneira de exprimir o equívoco das visões tradicionais, como o hilemorfismo, é entender que tomam o indivíduo constituído como a realidade realmente interessante e a explicar. Ora, “une telle perspective de recherche accorde un privilege ontologique à l’individu constitué” (p.21).  Esses raciocínios provocam um problema lógico, pois pressupõem um termo primeiro que daria origem ao indivíduo, e esse termo já é um indivíduo ou pelo menos algo de individualizável.

Trata-se ainda de um equívoco temporal, que não considera a dimensão do devir e seu papel (especialmente no caso do ser vivo) no processo de individuação.  Os indivíduos vivos nunca estão inteiramente “acabados”, “individualizados”, mas sempre em processo.  O que é preciso, segundo Simondon, é “connaitre l’individu à travers l’individuation plutôt que l’individuation à partir de l’individu” (22).  E nesse permanente processo de individuação, a relação entre o ser vivo e o meio ambiente é fundamental.  “Relação” é uma palavra-chave do vocabulário de Simondon.

Não há oposição entre ser e devir.  O devir é uma dimensão do ser, correspondendo a uma capacidade do ser de se defasar (déphaser) em relação a ele mesmo.  O ser pré-individual é mais que uma unidade, não se aplicando a ele as noções lógicas tradicionais de identidade e do terceiro excluído.

O problema é que desde os gregos, conhecia-se apenas um tipo de equilíbrio, o estável, ao passo que agora, especialmente após a física quântica, podemos falar de equilíbrio META-ESTÁVEL (métastable), um tipo de equilíbrio que não exclui o devir.  Nesse sentido, a individuação física é a resolução de um sistema metaestável a partir de um estado do sistema como o da “surfusion” ou “sursaturation” (24).

Nesse panorama, o vivo tem um traço singular: ele conserva em si uma atividade de individuação permanente, diferentemente do cristal ou da molécula. Ele é “teatro”de individuação.  A diferença entre o vivo e a máquina é que ele resolve problemas não somente se adaptando ao meio (como faz uma máquina), ou seja, modificando sua relação com o meio, mas sim se modificando a si mesmo, ao inventar estruturas internas novas.

Depois da individuação física, vem a psíquica, já que o indivíduo se constitui em sujeito, para resolver suas problemáticas, intervindo ele mesmo como elemento e dimensão do mundo.  O sujeito pode ser concebido como unidade do ser enquanto vivente individuado e enquanto ser que se representa sua ação através do mundo como elemento e dimensão do mundo.

Em seguida, vem a individuação coletiva, o grupo.  O coletivo intervém como reslução da problemática individual, o que significa que a base da realidade coletiva está já parcialmente contida no indivíduo, sob a forma da realidade pré-individual que permanece associada à relidade individuada (27).

Em resumo, na concepção de Simondon, o devir é uma dimensão do ser, não algo que viria se acrescentar a ele.  Assim, as noções de susbtância, forma e matéria são substituídas pelas de informação primeira, ressonância interna, potencial energético e ordens de grandeza.

Claro, essas rápidas notas não chegam nem a riscar a superfície das riquezas que o primeiro volume da monumental obra contém.  O capítulo em que Simondon analisa os pressupostos ocultos responsáveis pelo êxito da teoria hilemórfica durante séculos a fio (em sua análise da cultura escravagista da Antigüidade) é absolutamente brilhante.  Numa espécie de genealogia à la Nietzsche, ele atribui o paradigma a uma visão técnica (mas que no fundo é social) baseada numa ordem hierárquica de quem comanda (o mestre) e quem executa (o escravo) o trabalho.  Daí, também, a valorização da alma em detrimento do corpo.  Steven Shaviro oferece uma excelente síntese das duas obras aqui e aqui.

Simondon não constitui parte do meu atual projeto de pesquisa (desenhar uma cartografia epistemológica da cibercultura a partir, neste momento preciso, das teorias alemães da mídia).  Contudo, é um pensador que deve ser estudado em toda tentativa de revisão histórica e arqueológica da tecnocultura contemporânea.  Ao lado de Heidegger, ele forma uma espécie de diagrama histórico para o entendimento da cibercultura.  Em breve, mais sobre Simondon.

Cibercultura e História (?)

[obs. preliminar: se você achar interessantes as elucubrações abaixo, dê uma olhada neste post do meu outro blog para entender mais sobre a mecânica dos títulos das obras de divulgação da cibercultura]

Este texto tem uma dupla finalidade. Por um lado, trata-se de ajudar o autor a alinhavar algumas idéias caso sua proposta de apresentação seja aceita no GT “comunicação e Cibercultura” do próximo encontro da Compós.  Por outro, pretende-se oferecer aos três leitores do blog a oportunidade de uma espiada indiscreta nos complexos e abstrusos abismos da interioridade mental deste que aqui escreve.  Serve, assim, como uma espécie de cautionary tale: “viram como ele raciocina?  Agora façam exatamente o contrário, para seu próprio bem!”  Na academia, no fim das contas, a única coisa que vale a pena é a honestidade intelectual.  Se não podemos dizer o que pensamos e do jeito que queremos não vela a pena seguir em frente. Então vamos lá:

Se para Baudrillard, o “crime perfeito” é a subtração do real pelo seu duplo midiático (sem que ninguém se dê conta ou se preocupe com isso), devemos à cibercultura a segunda ofensa mais bem perpetrada: o seqüestro da história nos discursos da novidade radical que povoam os trabalhos de divulgação sobre as “novas” tecnologias.  Sim, essa nobre e idosa senhora foi abduzida sem que sequer tivéssemos o direito de pagar seu resgate.  Em certo sentido, paradoxalmente, poderíamos dizer que tal subtração do histórico faz parte da dinâmica interna da própria história da mídia.  Em outras palavras, desde pelo menos o alvorecer da modernidade, é característico do processo da inovação e transformação tecnológica uma política de terra arrasada em relação ao passado.  A permanência (e “renovação”) do novo implica certo mecanismo de permanente amnésia intencional.  Mas teríamos de falar ainda em um segundo nível desse seqüestro, agora na esfera dos discursos.  Se os meios estão sempre “remediando” as mídias anteriores, como querem Bolter e Grusin, estão também assimilando-as segundo uma lógica que freqüentemente nos impede inclusive de enxergar o antigo no novo.  E as apreensões teóricas e populares a respeito dessa vida dos meios não fazem mais que duplicar – e amplificar – tal procedimento.  É um pouco como os Borg costumam fazer com as outras formas de vida no seriado Star Trek: Next Generation: “we will add the biological and technological distinctiveness of your species to our own” (não é curioso que essa retomada da franquia tenha as palavras “próxima geração” acrescentadas ao título?  Adriana, valeu pela lembrança dessa maravilhosa frase dos Borg!).  E isso a tal ponto que já não se possa identificar o que existe de “alienígena” no coletivo Borg. Sem dúvida que essa abdução da história é muito mais dramática no campo da literatura de divulgação.  Vejamos alguns exemplos dessa retórica em títulos de obras recentes:

“YouTube e a Revolução Digital: como o maior Fenômeno da Cultura Participativa está transformando a Mídia e a Sociedade”; “Socialnomics: como as Mídias Sociais transformam nossas Vidas e a Forma como fazemos Negócios”; “Wikinomics: como a Colaboração de Massa muda Tudo”.

Certo, trata-se de casos extremos, mas eles são sintomáticos.  Não se fala deste ou daquele domínio específicos que as novas mídias irão revolucionar.  Fala-se do universo inteiro.  A colaboração de massa “muda tudo”!  O passado já não existe quando não sobre nenhum resto para observarmos.  Como diria (como disse) Benjamin, um impiedoso vento sopra intermitentemente empurrando o Anjo da história em direção a um futuro inexorável, a um progresso implacável.  Não é possível voltar atrás, não é possível virar o rosto para as ruínas abandonadas às nossas costas.

Mas o que especificamente fascina nessa retórica? A combinação de um discurso prescritivo e “didático” com o radical esquecimento da história.  O leitor desses manuais deve ser levado a crer piamente que o YouTube irá virar o universo de ponta-cabeça sem jamais correr o risco de desaparecer numa nuvem de fumaça, como sucedeu com o Second Life, por exemplo.  Ah, triste destino do pesquisador da cibercultura que escolha com tanta paixão seu objeto, apenas para assistir à sua desintegração radical alguns poucos anos depois!  O que mais me exaspera nesses títulos é a repetição do “como”, que poderíamos traduzir, não sem uma ponta de ironia, claro, do seguinte modo: “pobre leitor inconsciente das vastíssimas conseqüências da revolução digital: permita que nós, sábios compiladores de manuais e marketeiros de plantão, iluminemos sua ignorância com nossos profundos insights”.  Nesse sentido, a repetição do “como” nos permitiria elaborar ainda outro tratado para a cultura digital: “como escrever títulos bombásticos para livros sobre as novas mídias”.

Espero que o leitor perdoe a acidez talvez algo exagerada das linhas acima.  Como apaixonado pelo maravilhoso mundo novo das tecnologias e das mídias, não desejo ser confundido com um apocalíptico ou moralista nos moldes de Andrew Keen (sobre meu emocionante embate com Andrew Keen no Twitter semana passada estarei escrevendo aqui em breve!).  O que proponho, no fim das contas, é simplesmente devolver à cibercultura aquilo que lhe foi roubado tanto no campo das apreensões populares quanto dos juízos críticos: a densidade histórica e temporal.  A bem da verdade, é preciso reconhecer que nos últimos anos têm se multiplicado exponencialmente as obras que exploram com competência a história da mídia e recuperam arqueologicamente os cenários tecno-culturais do passado.  E é precisamente a respeito desse interesse recente pela dimensão história das dinâmicas tecnológicas que pretendo falar na Compós.  Para ser mais específico, o objetivo, bem modesto, é apresentar um panorama do pensamento de matriz alemã, cujo traço mais singular é provavelmente essa sensibilidade ao tema da história e aos procedimentos arqueológicos.  Em alguns desses autores, inclusive, já nem se trata exatamente de uma “arqueologia”, mas sim de sugerir uma “(an)arqueologia” da mídia, buscando o novo no antigo em vez de procurar o antigo no novo (Zielinski).  Essa proposta interessantíssima consiste, no fundo, em encontrar momentos passados que possam ser colocados num estado de tensão criativa com o presente.  Em última instância, acredito que essa atenção ao histórico nos permitirá adquirir um distanciamento importante em relação ao presente, deixando para trás o que talvez seja, ainda, a infância da cibercultura.  E que criança chorona ela é…

Teoria da Mídia Alemã (novo projeto)

Terminada a redação do projeto para o novo módulo da pesquisa.  O projeto se intitula “Cartografias da Cibercultura: a Teoria da Mídia Alemã” e constitui uma extensão da pesquisa anterior.  O objetivo, em poucas palavras, é mapear o pensamento acadêmico alemão (bem pouco conhecido no Brasil) sobre cibercultura.  Um autor de destaque no projeto é precisamente Vilém Flusser, que os alemães gostam de considerar como integrante da tradição alemã de reflexão sobre a mídia – apesar de ser tchecho e ter vivido mais de 30 anos no Brasil.  Abaixo, segue um pequeno trecho do projeto

“Se até o momento presente, os dados coletados pela pesquisa pareciam apontar o acerto das proposições iniciais de definir (operatoriamente) a cibercultura como uma vasta formação cultural e de aproximar suas concepções “teóricas” das representações “populares”, estas conjecturas ainda se apresentavam, porém, como insuficientes para uma caracterização mais detalhada do fenômeno cibercultural.  De fato, a imprecisão e a nebulosidade do termo “cibercultura” permaneciam constituindo problemas exigindo maior exploração.  Parecia faltar à bibliografia investigada uma dimensão “arqueológica” e uma consideração maior das dinâmicas propriamente “materiais” dos fenômenos tecnológicos[1].  Esses dois aspectos, bem como outras dimensões pouco exploradas na bibliografias em inglês e francês constituem, contudo, o foco das atenções das pesquisas realizadas nos últimos anos no contexto alemão – infelizmente ainda pouco conhecida no cenário acadêmico brasileiro.  É verdade que hoje já é possível encontrar boas traduções em inglês ou francês de autores e obras representativos da Medientheorie.  Contudo, não se pode negar que largas parcelas dessa literatura – e muitos de seus representantes – são indisponíveis em qualquer outra língua que o alemão.

Mesmo partes expressivas da obra de Vilém Flusser, filósofo tcheco-brasileiro, que tem recebido muito mais atenção em terras européias que em território brasileiro, ainda aguardam tradução para o português ou inglês. Se não fosse pelo trabalho pioneiro de pesquisadores como Gustavo Bernardo Krause, nos estudos literários, e Norval Baitelo e Michael Hanke, na comunicação, Flusser, que residiu no Brasil por mais de 30 anos, correria o risco de estar quase que inteiramente esquecido por aqui[2].  Na Alemanha, Flusser é considerado um pensador da tradição alemã, talvez, hoje, ainda o grande nome da teoria da mídia alemã.  Como se verá, praticamente não existe manual ou recensão sobre teorias da comunicação na Alemanha que não inclua o nome de Flusser. Na apresentação a Medienkultur, Stefan Bollman chega a afirmar que, “no contexto alemão, Flusser foi freqüentemente encarado como profeta de uma época (Prophet einer Epoche) na qual as tecnologias digitais iriam proporcionar à humanidade um futuro brilhante” (1999: p. 7, grifos nossos). Em outras palavras, uma espécie de McLuhan escrevendo em alemão.  Outros teóricos de mídia importantes, como Friedrich Kittler, Dieter Mensch ou Sybille Krämer são virtualmente desconhecidos no Brasil. Acrescente-se a tudo isso o típico “isolacionismo” do pensamento acadêmico alemão, corretamente destacado por Theo Röhle[3], que dificulta o acesso às idéias e o intercâmbio entre pesquisadores alemães e de outras nacionalidades.

Meu primeiro contato com a Medientheorie alemã aconteceu em princípios da década de 90, no âmbito do doutorado em Literatura Comparada da UERJ, através de encontros e conversas com Hans Ulrich Gumbrecht, que apresentava com desembaraço as idéias de Kittler, Luhmann e do programa de pesquisa das “materialidades da comunicação”. Na verdade, Gumbrecht, radicado nos Estados Unidos desde 1989, é provavelmente o principal articulador da escola.  Na Universidade de Stanford, ao lado de um grupo de pensadores europeus e norte-americanos – Jeffrey Schnapp, Niklas Luhman, Friedrich Kittler e David Wellbery, entre outros -, Gumbrecht vem delineando o esboço de um programa de pesquisas que já havia adquirido forma inicial em uma coletânea de artigos publicada na Alemanha em 1988: Materialität der Kommunikation[4].  A trajetória intelectual de Gumbrecht pode ser tomada paradigmaticamente como núcleo para uma genealogia da teoria das materialidades da comunicação, ainda que diversos outros pensadores tenham colaborado, de forma isolada ou coletivamente, para a constituição desse campo de estudos”


[1] Naturalmente, existiam valiosas exceções, entre as quais se poderia citar, por exemplo, a paradigmática obra de Lev Manovich, The Language of New Media (2000), ou o trabalho de Lisa Gitelman, Always Already New: Media, History and the Data of Culture (2006).

[2] Boa parte da obra de Flusser foi escrita – ou traduzida por ele próprio – em alemão, mas também em outras línguas, como português, inglês e francês. Essa obra começou a ser resgatada do esquecimento no Brasil a partir de meados da década de noventa (ele morreu em 1991, em um acidente de carro), primeiramente no campo dos estudos literários. Coincidentemente, também foi no horizonte da teoria literária que se desenvolveu a chamada “escola das materialidades da comunicação”.  Minha primeira recensão sobre as teses das “materialidades da comunicação” data de 2001. Cf. Felinto (2001).

[3] Cf. http://netzmedium.de/2009/04/10/german-media-theory-too-shy-to-admit-its-own-greatness/

[4] Para uma competente recensão sobre a obra, ver Hanke (2005). Disponível em <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R0680-1.pdf&gt;

Programa do Curso no PPGC UERJ, 2009-1

Eis, finalmente, o programa do curso que irei oferecer no PPGC da UERJ no próximo ano.  Busca conjugar uma espécie de arqueologia da cibercultura com uma introdução à nova teoria da mídia alemã, além de passear pelo que estou chamando de “pensadores paleocibernéticos”, como Flusser e McLuhan.  O curso é aberto a ouvintes e estudantes de mestrado e doutorado de outros programas de pós-graduação.  Informações na secretaria do PPGC: 22340757.

Mesa da Abciber

Cibercultura a 8 mãos: morte, permanência, renascimento e métodos. Para uma epistemologia da cultura das redes[1]

Adriana Amaral[2] (coordenadora da mesa)

Maria Clara Aquino[3]

Erick Felinto[4]

Sandra Portela Montardo[5]

Universidade Tuiutí do Paraná – UTP-PR/Facinter-PR

Universidade Luterana do Brasil/Universidade Federal do Rio Grande do Sul  – ULBRA/UFRGS

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Centro Universitário Feevale – FEEVALE

Resumo

Assunto-Re: Cibercultura a 8 mãos: morte, permanência, renascimento e métodos. Para uma epistemologia da cultura das redes é uma mesa temática que reúne quatro trabalhos de pesquisadores do campo da Comunicação que concentram suas pesquisas em torno da Cibercultura e seu desenvolvimento teórico e metodológico. Problematizar teorias e métodos, questionar conceitos e elaborar um panorama do contexto atual da pesquisa em Cibercultura  é a proposta dessa mesa temática, que através dos quatro trabalhos que a compõem, busca tensionar as discussões em torno dos avanços e das deficiências e carências das investigações atuais do campo.

Palavras-chave

Cibercultura; Metodologia; Teoria; Netnografia; Análise de Redes Sociais


[1] Proposta de mesa temática apresentada ao eixo temático “Entretenimento, práticas socioculturais e subjetividade”, do III Simpósio Nacional da ABCiber.

 

[2] Doutora em Comunicação Social pela PUCRS com Estágio de Doutorado no Boston College, EUA. Professora e pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Comunicação e Linguagens da UTP-PR e do curso de Comunicação Social da Facinter-PR. Sócia-fundadora e Membro do CCD da ABCiber. E-mail: adriamaral@yahoo.com

[3] Jornalista pela Universidade Católica de Pelotas – UCPEL (2005), Mestre (2008) e Doutoranda em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Professora do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. E-mail: mcjobst@uol.com.br

[4] Professor do PPGCOM UERJ e pesquisador do CNPq. Autor dos livros “A Religião das Máquinas: Ensaios sobre o Imaginário da CIbercultura”e “Passeando no Labirinto: Textos sobre as Tecnologias e Materialidades da Comunicação”. Foi presidente da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação No Biênio 2007-2009 e atualmente é membro dos Conselhos Científicos da Socine e da Abciber.

[5] Doutora em Comunicação Social pela PUCRS (2004). Professora e pesquisadora do Centro Universitário Feevale, no Mestrado em Inclusão Social e Acessibilidade e no Mestrado em Processos e Manifestações Culturais. Atua no projeto Comunicação Corporativa em tempos de Conteúdo Gerado pelo Consumidor: desafios e tendências (CNPq) e é líder do Projeto Inclusão Social via Socialização On-line de Pessoas com Necessidades Especiais (PNE)(CNPq).

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OBS: é uma coincidência curiosa (e saborosa) que o título da mesa apresente o termo “cultura das redes”, próximo do termo alemão “netzkultur” e talvez mais adequado em alguns aspectos que “cibercultura”.  Veja-se a definição da Wikipedia alemã para o termo: “Netzkultur oder auch Internetkultur ist die Kultur des Internets. Für viele Menschen ist das Internet ein fester Bestandteil ihres Alltags geworden. Es verändert, wie jedes neue Medium, die Gesellschaft. Die soziologischen Auswirkungen derKommunikation im Internet werden auch mit dem populären Schlagwort der “Cybergesellschaft” zusammengefasst”.  Traduzindo a frase mais importante: “Para muitas pessoas, a internet se tornou uma componente integral de seu cotidiano”.  Ou seja, como sempre repetia o amigo André Lemos, a cibercultura é a cultura contemporânea.  Mas ainda temos mais a dizer sobre isso…

Abciber: A “Cibercultura” e a Teoria da Mídia Alemã

Tentando alinhavar idéias para a apresentação na Abciber:

  1. ainda é possível falar em Cibercultura?  O que o termo significa?
  2. A teoria da mídia alemã como resposta aos desafios da “late cyberculture”
  3. Os três eixos da teoria da mídia alemã: abordagens não-hermenêuticas, perspectiva histórico-(an)arqueológica, foco na dimensão estética dos fenômenos tecnológicos
  4. Kittler e Zielinski: descontruindo os discursos triunfalistas (se houver tempo, Gumbrecht)
  5. Vilém Flusser: um precursor
  6. Novos tempos, novas epistemologias

 

No fundo, a proposição é bastante modesta, e consiste tão somente na sistematização de um campo pouco conhecido por nós.  O domínio da francofonia na universidade brasileira ainda é inquestionável.  No campo da Cibercultura surgem brechas para a cultura acadêmica anglófila, mas o pensamento alemão (que, aliás, muito deve aos pós-estruturalistas franceses) não tem quase nenhum espaço no contexto brasileiro.  Mapear autores, teorias e abordagens é um trabalho sujo, mas necessário num ambiente cultural carente de cartografias e visões de conjunto.

Este trabalho será o germe de uma proposta de pesquisa (módulo do projeto “Cartografias da Cibercultura”) a ser conduzida na Alemanha em 2010 – se assim as divindades da Capes e do CNPq permitirem.  Uma tese de fundo dessa pesquisa é a necessidade de maior embasamento teórico nas pesquisas sobre Cibercultura.  A popularidade crescente de um discurso tecnicista, que converte as realidades sociais e culturais em números e estatísticas, tem esvaziado a reflexão teórica de sua dimensão filosófica – necessária a toda tentativa de compreensão abrangente do social.  Nesse afã de quantificar, de explicar com precisão e método (nos moldes em que as ciências “duras” encaram esses termos), a dimensão de risco do pensamento tem se obscurecido.  O risco, a criatividade, o atrevimento teórico são marcas, por exemplo, do trabalho de Zielisnki (e nesse aspecto, explicitamente inspirado por Flusser).   Não existe, por exemplo, um método precisamente delineado para executar uma pesquisa a partir dos pressupostos das teses das “materiaidades da comunicação” (Gumbrecht et alii).  O que existe é um parti-pris teórico, um desejo de produzir saber a partir de uma perspectiva alternativa (ainda que não excludente) ao paradigma hermenêutico que reina soberano há séculos no campo das humanidades.  Desde há alguns anos venho afirmando que a vanguarda dos estudos de comunicação se localizará no campo do audiovisual e das pesquisas sobre tecnologias de comunicação.  Isso porque a Cibercultura – se é que existe – possui uma dimensão estética cuja importância ainda não foi propriamente avaliada pela crítica.  Se ela é um objeto uniforme e identificável, o é exatamente como imago mundi – como um horizonte de experimentações, sensações e imagens no qual o aspecto lúdico (arte-entretenimento) merece relevo.  O fascínio contemporâneo com o tema das interfaces parece apontar precisamente para essa inter-relação entre arte, entretenimento, imagem e experimentação.  Nesse sentido, talvez nossa aproximação com o domínio das ciências duras deva se dar exatamente naqueles horizontes onde elas se aproximam das artes (e o trabalho de artistas-teóricos como Peter Weibel indica precisamente isso), e não numa tentativa de recuperar saudosamente a concepção moderna de uma ciência enunciadora de fatos e consolada na empiria.  Mas isso é um tema polêmico e que merece desenvolvimento mais cuidadoso…

O Que é um Dispositivo?

Nenhum pensamento forte e autêntico suporta adulação.  Eleger qualquer autor ou conceito como ídolo inquestionável é um dos maiores perigos que se pode correr na vida intelectual.  Por isso eu gosto de gente sem medo de derrubar altares, ainda que mesmo isso possa se converter também em uma espécie de maneirismo intelectual.  Mas ainda acho preferível à idolatria, que paradoxalmente nunca esteve tão viva quanto nesta época de suposta demolição iconoclasta.  Na verdade, a melhor forma de prestar homenagem e respeito a um grande autor freqüentemente passa pela crítica e pelo tensionamento.  O pensamento pós-moderno recusa, em seu discurso, qualquer forma de discipulado. Entretanto, o mercado acadêmico não tem carência de discípulos para seguir monotonamente nos passos dos grandes mestres, como Derrida, Deleuze e Foucault.  Guerrilla Metaphysics é deliciosamente iconoclasta, e bastante impiedoso com uma de nossas maiores divindades filosóficas, o argelino Derrida (mas não também sem a devida dose de respeito).  Confesso que muitas das coisas que irritam Harman na leitura do autor de A Gramatologia são também fonte de meus descontentamentos com Derrida.  Tenho com ele, como com alguns outros pensadores tipicamente pós-modernos, uma relação ambígua.  Aprendi e me deliciei imensamente com textos como La Pharmacie de Platon e Des Tours de Babel, ao passo que em outros momentos me exasperei com o estilo artificial, carregado de neologismos e duplos sentidos – o que Harman define como “highly mannered intellectual collage”.  Por vezes, Harman chega a ser impiedoso demais (mas sempre divertido): “ler Derrida após qualquer um dos fenomenologistas carnais é como passar de uma deliciosa refeição a algo a meio caminho entre resolver um quebra-cabeças e fazer a auditoria de uma restituição de imposto de renda” (p. 111).  Em meu outro blog, fiz troça repetidamente do exagero e promiscuidade com que Giorgio Agamben tem sido citado por aqui.  Agora vou pagar pela boca, pois quero discutir precisamente um pequeno – mas importantíssimo – trabalho do italiano.  Em O que é um Dispositvo? (lido na tradução francesa da Rivages), Agamben nos oferece uma análise profunda da noção (foucaultiana) de dispositivo, fundamental, me parece, para qualquer discussão da sociedade tecnológica contemporânea.  Entre as características mais importantes do conceito (que inicialmente Foucault traduz com a expressão “positividade”) está o fato de congregar realidades extremamente heterogêneas, de natureza material e imaterial, mas que se reúnem em torno de uma função estratégica e “racional”.  O dispositivo é precisamente a rede que se estabelece entre esses elementos heterogêneos – discursos, tecnologias, legislações, instituições etc.  Por muito tempo me seduziu o conceito de “imaginário”, que tem uma história rica e interessante no contexto francês, passando por pensadores como Bachelard, Gilbert Durand e Maffesoli.  Contudo, o imaginário parece me apresentar hoje pelo menos três problemas: 1. é excessivamente obscuro e polissêmico, como uma névoa que sempre escapa qualquer forma de definição mais rigorosa (algo que, para Durand, por exemplo, é constitutivo da própria força da noção), 2. corre freqüentemente o risco de se dissolver em uma idéia mística que, em última instância, seria responsável pela moldagem de toda a história e  de todo o pensamento humano e 3. tende a eliminar qualquer consideração sobre relações de poder e/ou determinantes econômicos na elaboração das imagens e na formação de um “imaginário” social.  O dispositivo, por outro lado, aparece como um conceito profundamente ancorado na história e na força das ideologias.  Além disso, tem um interessantíssimo foco na questão das tecnologias e técnicas que modelam formas sociais e paradigmas culturais.  Um dispositivo é fundamentalmente um aparato tecnológico (pouco importando se constitui exatamente uma máquina ou um conjunto de protocolos e discursos sociais).  O que Lisa Gitelman chama de “protocolos midiáticos” é também uma expressão do “dispositivo”: aquele aglomerado heterogêneo de convenções sociais e estruturas tecnológicas que intervêm continuamente em nossas relações com as mídias e com os outros com quem nos comunicamos por meio delas.  Já busquei anteriormente definir a cibercultura como uma formação cultural, conceito bastante próximo do de dispositivo.  Agora, interessa-me dar um passo adiante e abandonar por completo a expressão “cibercultura”.  Em conversas com Lev Manovich e Siegfried Zielinski, têm se tornado cada vez mais clara a percepção de uma dimensão “antiquária” (termo do segundo) dessa expressão, que vem caindo em desuso lá fora.  A palavra cibercultura ainda tem bastante força por aqui – e isso é explicável também pela desesperada necessidade que temos de recortar (artificialmente) campos do saber para justificar sua existência perante a Capes.  Lembro ter lido um relatório de avaliação do órgão acusando uma instituição de abandonar, em suas linhas de pesquisa, a ingênua distinção radicalizada entre “antigas” e “novas” tecnologias.  Mas o que disciplinas interessantes e inovadoras, como a história da mídia (mediengeschichte) e as materialidades da comunicação, vêm ensinando é exatamente nossa necessidade de relativizar as narrativas utópicas da evolução tecnológica e das rupturas radicais.  Como diz o Zielinski, mais interessante ainda que buscar o antigo no novo (o que em meio aos muitos discursos exaltadores da inovação já representa um avanço) é procurar o novo no antigo.  Daí a proposta de uma (an)arqueologia da mídia (Cf. Archäologie der Medien: zur Tiefenzeit des Technischen Hörens und Sehens).  Aliás, acredito firmemente que o único modo efetivamente produtivo de pensar o digital é por meio de sua continua aproximação e distanciamento com formas tecnológicas anteriores.  Mas como a Capes adora colocar as coisas em seus “devidos lugares”, numa espécie de paixão classificatória que em seu paroxismo só pode recair na absurda enciclopédia chinesa de Borges citada por Foucault (para quem quiser conhecer a origem dessa referência, recomendo ler o “O Idioma Analítico de John Wilkins”), estamos aqui novamente picotando o saber e engendrando categorias artificiosas.  A bem da verdade eu nem acho que seja necessário abrir mão completamente do termo “cibercultura” (mesmo que ele confunda mais do que esclareça).  O mais importante seria aprender a pôr o conceito dentro de uma moldura história (e genelógica e arqueológica) que freqüentemente lhe falta.  A cibercultura talvez seja um vasto dispositivo, composto de discursos, imagens, práticas e estruturas tecnológicas cooperando para determinados fins.  Mais sobre Agamben e o dispositivo daqui a alguns dias.

Vilém Flusser e o Vampyroteuthis Infernalis

Neste post, reproduzo partes do meu artigo “Vampyroteuthis: o Cinema como Segunda Natureza”.  Dado que largas porções da obra de Flusser estão inéditas em português, incluindo o exótico Vampyroteuthis Infernalis, disponível apenas em alemão, penso ser importante oferecer em nossa língua pelo menos uma síntese das idéias contidas nesse livro tão singular.  Flusser, pensador que se assentava na tradição fenomenológica, dedicou imensa atenção à dimensão material dos meios e das experiências comunicacionais. O filósofo, que por toda sua vida nunca abandonou sua preciosa máquina de escrever (é divertido, aqui, lembrar os estudos de Kittler e Stingelin sobre a máquina de escrever de Nietzsche, este último incluído no volume Materialities of Communication),  gostava de jogar com as palavras alemãs Tasten e tasten (substantivo e verbo), respectivamente “teclas” e “sentir”, “apalpar”.  Como define Paola Bozzi, “sua meta é uma diligente comunicação tátil do pensamento com seu objeto como consciente reação ao caráter dominante do significar: portanto, nada de filosofar ‘com o martelo’, mas antes a utopia de um conhecimento não violento, que “nasce inteiramente do contato com os objetos” (2005: p. 9).  Não é à toa que seus textos, mesmo quando fundados nas mais irreais “ficções filosóficas”, como é o caso do Vampyrotheuthis, possuem uma qualidade profundamente material e sensorial.

O brilhante trabalho de Bozzi sobre o Vampyroteuthis Infernalis pode ser encontrado neste link (também em alemão)…

Escrito em parceria com o biólogo e artista francês Louis Bec, que colaborou com um conjunto de ilustrações, Vampyroteuthis Infernalis foi publicado em 1987, em alemão. Ainda hoje, a obra permanece sem tradução para outras línguas. A parceria com Bec faz todo sentido no caso de um trabalho tão heterodoxo como esse. Conhecido por suas pesquisas em torno das inter-relações entre arte e ciência, Bec vem elaborando uma obra centrada no desenvolvimento de formas de comunicação entre seres artificiais e naturais. Ele se apresenta como o único “zoosistematizador” do mundo, desenvolvendo uma “epistemologia fabulatória baseada na vida artificial e na Tecnozoosemiótica.” Toda sua empresa científico-artística parte da premissa de que o suposto profundo e definitivo abismo que marca o limite entre os mundos animal e humano parece não ser mais completamente convincente quando confrontado com a pesquisa científica atual, nos campos da etologia, da comunicação e da cognição (Bec, 2009: p. 465). Precisamente no sentido de ultrapassar esse abismo, a tecnozoosemiótica estuda os sinais e mecanismos de comunicação das várias espécies, servindo como base para o estabelecimento de novas relações entre o animal, a máquina e o homem.

“Epistemologia fabulatória” talvez seja também um bom termo para definir o intrigante ensaio desenvolvido em parceria com Flusser. Na verdade, Vamproteuthis Infernalis constitui uma legítima ficção filosófica: “Flusser não apenas pensava que todo discurso fosse uma ficção, mas também que todo discurso precisaria explicitar a sua condição ficcional” (Bernardo, 2008: p. 132). Por meio da fábula, do experimento mental (Gedankenexperiment), o filósofo buscava promover as núpcias da razão e da imaginação, lançando a seu objeto um olhar renovador e diferenciado. A interpretação de Paola Bozzi é precisa: “Na tentativa de abandonar o contexto do familiar, essa estratégia se avizinha ao ímpeto do pensamento fenomenológico: apenas a libertação do pensamento de todo preconceito e das armaduras categoriais permite uma nova sensibilidade a uma realidade usualmente engajada pelas ciências naturais; sensibilidade pelo singular, pelo insólito, e, com isso, uma renovação do espanto filosófico (philosophischen Staunens) (…) É somente depois que as camadas do familiar tiverem sido consumidas que as coisas aparecem de forma renovada, ‘no fulgor dos fenômenos concretos’ (Flusser 1993: 99)” (Bozzi, 2005: p. 10). Esse espanto, princípio de toda filosofia segundo Aristóteles, tem aqui uma coloração barroca. É a surpresa com o estranho, com o extremo, com a mirabilia da natureza e da infinita criatividade de Deus. De fato, a primeira impressão que se tem ao ler o relato de Flusser é de que tudo não passa de uma elaborada fábula, e seu personagem, o Vampyroteuthis, um protagonista ficcional. Entretanto, as fronteiras entre o maravilhoso da ficção e o familiar da realidade se confundem quando descobrimos que o Vampyroteuthis é uma criatura real. Capturado pela primeira vez em 1899 por uma expedição marinha alemã, esse raro animal rapidamente chamou a atenção dos zoólogos pela série de traços singulares que apresenta. O imponente e misterioso nome, Vampyroteuthis Infernalis, designa uma pequena espécie de lula que habita nas profundezas abissais do oceano. Em tradução literal, significa “a lula-vampiro do inferno”, um qualificativo talvez assustador demais para um animal tão pequeno e inofensivo. Mas são a estranheza e monstruosidade do Vampyroteuthis que justificam a denominação. Seus olhos enormes e avermelhados, as membranas que possui sobre seus tentáculos (que lembram a capa de um vampiro), suas capacidades de bioluminescência e sua peculiar maneira de movimentar-se produzem no observador uma perturbação dos sentidos, um incômodo com o escândalo que tal criatura pode representar na ordem da criação. Porém, não devemos nos deixar fascinar excessivamente com a dimensão etológica do texto. Não obstante a relativa precisão científica com que descreve o Vampyroteuthis, Flusser não tem como objetivo, naturalmente, produzir um relato de ciência marinha. Sua escolha por um tema tão peculiar visa tomar “um outro e radical ponto de vista epistemológico” em relação a nosso modo tradicional de encarar o mundo (Bozzi, 2005: p. 8). Como diz o filsósofo, “uma conversação com o Vampyroteuthis é um mergulho no insólito” (ein Tauchen ins Ungewohnte) (Flusser, 2002: p. 37) .

Mas esse mergulho, paradoxalmente, tem como função alcançar uma compreensão renovada do próprio homem. Compreensão capaz de oferecer-nos um “modelo verdadeiramente mítico para as possibilidades ainda não efetivadas em nós” (op. cit.: p. 70). Flusser elege uma criatura que se encontra nas antípodas da condição humana para funcionar como figura de uma ficção sobre o homem e seu mundo cultural-tecnológico. É nesse extremo dos pólos opostos que o autor desenha um modo de pensar próximo da proposta benjaminiana. Na obra sobre o Trauerspiel, Benjamin recusa o papel tradicionalmente atribuído ao conceito de funcionar como regra mediana capaz de estabelecer princípios universais. Em outras palavras, em lugar de procurar nos fenômenos os traços que permitam aproximá-los de outros – para assim submetê-los a um denominador comum ou regra geral –, o conceito deve encontrar aquilo que os particulariza. Assim fazendo, assegura ao pensamento sua potência criativa e seu caráter temporal, passageiro (ou histórico). “O extremo, que o conceito tem como tarefa ativar, marca assim o ponto onde um fenômeno é constitutivamente implicado naquilo que ele não é, no que é outro e externo, no que resiste compreensão e contenção” (Weber, 2008: p. 8). Tomando a liberdade que as ficções e as metáforas permitem, Flusser se inscreve na longa tradição de evocar as ciências naturais e o mundo animal como domínios análogos e inseparáveis da experiência humana. Arte e ciência são convocadas para promover a fusão daquilo que se tentou separar: sujeito e objeto, natureza e cultura, razão e imaginação. O texto de Flusser oferece inicialmente ao leitor um “sabor científico”, que passo a passo vai sendo desconstruído pela poesia e por uma série de argumentos insólitos. Ao mencionar o nojo que costumamos sentir face aos animais invertebrados (a lula, por exemplo, é um animal “mole”: Weichtier), ele elabora a curiosa e imaginativa hipótese: “Der Ekel rekapituliert die Phylogenese” (“o nojo recapitula a filogênese”) (Flusser, 2002: p. 14). Dito de outro modo, quanto mais afastado de nós encontra-se um ser na ordem filogenética, mais intensa é nossa sensação de repulsa diante dele .

Em um alemão elegante e aparentemente sério (mas por trás do qual freqüentemente se oculta a ironia), Flusser desestabiliza nossos operadores de leitura tanto para os textos científicos quanto para os filosóficos ou literários. Nesse processo escritural, o autor se propõe a “superar nosso antropocentrismo e observar nossas condições de vida do ponto de vista do Vampyroteuthis” (op. cit.: p. 15). Abandona, dessa forma, os preceitos da objetividade que nos separam dos objetos e propõe uma epistemologia que poderíamos chamar de “amorosa” . Sem que nos apercebamos por completo, somos induzidos pelo texto a desenvolver um sentimento de simpatia pelo esquisitíssimo Vampyroteuthis. É certo que habitamos universos situados em antípodas – seu mundo é para nós um inferno e vice-versa –, mas ambos existimos como atualizações possíveis de um mesmo potencial filogenético, ambos somos residentes do mesmo planeta. A ficção filosófica de Flusser se encerra com uma rápida reflexão sobre os meios tecnológicos. Essa reflexão parte do problema da memória, questão central tanto no mundo humano como no animal, para chegar à arte e às mídias. “o problema central da memória é o problema central da arte, que, tomada em sua essência, constituiu um método para estabelecer uma memória artificial” (2002: p. 60). Nesse sentido, o homem se diferencia do animal, cuja memória é coletiva, armazenada nas células embrionárias e transmitida de geração em geração pela genética. A memória animal dura, assim, o tempo que a terra durar. Desprovido dessa capacidade inata, o homem faz arte e utiliza suportes, mas num processo sempre deficiente. Estamos constantemente em luta contra os objetos (Gegenstände) , que oferecem permanente resistência a nossa apropriação deles: o papel se rasga, o mármore se rompe, a cera se deforma. “Nós vivemos e conhecemos em função do mármore, da película de filme, do alfabeto da língua escrita” (ibid.). Esses materiais não-vivos (diferentes, portanto, da memória viva e biológica dos animais) modelam toda forma de cognição e vida humanas. Por meio dessa luta constante, o homem apreende a essência dos objetos e adquire novas informações que são plasmadas na arte. A resistência dos objetos é uma provocação ao homem. Nós combatemos a malícia (Tücke) da matéria, ao passo que o Vampyroteuthis, com sua memória inter-subjetiva, combate a malícia dos outros de sua espécie (pois a lula-vampiro, como se verá, é um animal malicioso, enganador).

Entretanto, hoje já começamos a criar um outro tipo de memória artificial inter-subjetiva e imaterial por meio dos bancos de dados e das tecnologias digitais. “Na verdade, esses meios não são órgãos de luz na superfície de nossa pele [como é o caso do Vampyroteuthis], mas eles são também eletromagnéticos. Uma revolução vampiromórfica está em andamento (…) a arte do Vampyroteuthis pode servir como modelo para a compreensão dessa revolução cultural” (2002: p. 63). O trabalho humano vai se tornando supérfluo, cabendo agora às máquinas lutar contra a resistência dos materiais, ao passo que o homem elabora novas e imateriais informações – algo que se pode denominar de “Verarbeitung von Software” (processamento por softwate), onde o “soft” remete ao animal mole (Weichtier). Desse modo, o Vampyroteuthis é um animal mole que se vê forçado a usar a estratégia dos vertebrados para construir um simulacro de esqueleto; ao passo que o homem é um vertebrado cuja complexidade o força a emular o animal mole na constituição de uma arte imaterial.  “Do mesmo modo, ainda, que o Vampyroteuthis utiliza suas capacidades de bioluminescência para iludir e escapar dos predadores, Nós construímos cromatóforos (televisão, vídeo, imagens sintéticas transmissíveis por monitores de computador), com cujo auxílio o emissor alicia enganosamente (lügnerisch) o receptor – uma estratégia que no futuro será chamada, sem dúvida, de arte (caso o homem não decida desistir por completo desse conceito)” (2002: p. 65). Desse modo, o homem encontra no Vampyroteuthis seu destino histórico. Ele cria tecnologias de comunicação e armazenamento cuja estrutura e finalidade o aproximam das estratégias de sobrevivência do singular animal. Nas linhas finais do texto, o autor convoca o homem a tal destino: “Como animais que ultrapassaram sua animalidade (ou pensam que devem ultrapassá-la), nós devemos nos engajar na busca da imortalidade através do outro, como faz o Vampyroteuthis. Devemos nos engajar na arte. Nesse nosso engajamento, emerge o Vampyroteuthis em nós. Nós nos tornamos visivelmente vampiromórficos” (ibid.).