No curso sobre a Arqueologia da Cibercultura, em andamento no PPGC da UERJ neste semestre, Gilbert Simondon é um pensador-chave não apenas devido às idéias que expressa no clássico “Du Mode d’Existence des Objets Techniques” (largamento citado pelo colega André Lemos em seu livro “Cibercultura”). Seu pensamento sobre a técnica – bem como o impacto que teve no cenário cultural posterior, em termos de filosofia e compreensão da sociedade tecnológica – só pode ser inteiramente apreendido à luz de um contexto mais amplo, do qual o citado livro constituía apenas uma parte. De fato, “Du Mode d’Existence des Objets Techniques” foi escrito como complemento da gigantesca Tese de Doutorado que portava o título “L’Individuation à la Lumiere des Notions de Forme et d’Information”. Essa tese foi publicada em dois volumes separados: “L’individu et sa Genese Physico-Biologique” (1964) e, somente muitos anos depois, “L’Individuation Psychique et Collective” (1989). As inovadoras teses de Simondon sobre o processo de individuação são fundamentais para se apreender em profundidade suas proposições a respeito do modo de existência dos objetos técnicos. Mas o que é “processo de individuação”? Grosso modo, trata-se de uma antiga questão filosófica, que diz respeito ao modo como qualquer coisa (e aqui se deve compreender mesmo “qualquer coisa”, de um organismo animal a uma máquina ou ser humano) vem à luz. Ou seja, como um ente se constitui como indivíduo a partir de um fundo pré-individual. Pensemos na constituição de um ser humano: um óvulo é fecundado, acontece a gestação, nasce o bebê, e ao longo de toda vida esse sujeito atravessa um processo de individuação (ou seja, tornar-se uma entidade separada, ainda que em constante intercâmbio, com o mundo que o cerca). Uma estátua trabalhada por um artesão também experimenta um processo de individuação, gestado nos golpes do cinzel que molda a matéria da qual a obra irá destacar-se (mármore, madeira etc.). Antes de compreender em profundidade como se dá tal processo, Simondon precisa desfazer uma série de equívocos teóricos e filosóficos que levaram a sérias distorções sobre a real natureza da individuação.
Tradicionalmente, existem duas maneiras de se abordar a realidade do ser como indivíduo: substancialista e hilemórfica (o encontro de uma forma e de uma matéria). O problema de todas as duas é que ambas supõem um princípio de individuação anterior a ele mesmo, suscetível de explicá-lo, produzi-lo ou conduzi-lo. A doutrina hilemórfica (de “hilós”, matéria e “morfos”, forma), de longa sobrevida desde sua origem na filosofia grega, sugere a gênese do indivíduo através do encontro de uma forma pré-dada com uma substância também já existente. Mas se essa forma já existia desde sempre (por exemplo, em um hipotético céu platônico das idéias), ela seria algo de anterior ao próprio processo de individuação e, portanto, já um “indivíduo”.
Desse modo, outra maneira de exprimir o equívoco das visões tradicionais, como o hilemorfismo, é entender que tomam o indivíduo constituído como a realidade realmente interessante e a explicar. Ora, “une telle perspective de recherche accorde un privilege ontologique à l’individu constitué” (p.21). Esses raciocínios provocam um problema lógico, pois pressupõem um termo primeiro que daria origem ao indivíduo, e esse termo já é um indivíduo ou pelo menos algo de individualizável.
Trata-se ainda de um equívoco temporal, que não considera a dimensão do devir e seu papel (especialmente no caso do ser vivo) no processo de individuação. Os indivíduos vivos nunca estão inteiramente “acabados”, “individualizados”, mas sempre em processo. O que é preciso, segundo Simondon, é “connaitre l’individu à travers l’individuation plutôt que l’individuation à partir de l’individu” (22). E nesse permanente processo de individuação, a relação entre o ser vivo e o meio ambiente é fundamental. “Relação” é uma palavra-chave do vocabulário de Simondon.
Não há oposição entre ser e devir. O devir é uma dimensão do ser, correspondendo a uma capacidade do ser de se defasar (déphaser) em relação a ele mesmo. O ser pré-individual é mais que uma unidade, não se aplicando a ele as noções lógicas tradicionais de identidade e do terceiro excluído.
O problema é que desde os gregos, conhecia-se apenas um tipo de equilíbrio, o estável, ao passo que agora, especialmente após a física quântica, podemos falar de equilíbrio META-ESTÁVEL (métastable), um tipo de equilíbrio que não exclui o devir. Nesse sentido, a individuação física é a resolução de um sistema metaestável a partir de um estado do sistema como o da “surfusion” ou “sursaturation” (24).
Nesse panorama, o vivo tem um traço singular: ele conserva em si uma atividade de individuação permanente, diferentemente do cristal ou da molécula. Ele é “teatro”de individuação. A diferença entre o vivo e a máquina é que ele resolve problemas não somente se adaptando ao meio (como faz uma máquina), ou seja, modificando sua relação com o meio, mas sim se modificando a si mesmo, ao inventar estruturas internas novas.
Depois da individuação física, vem a psíquica, já que o indivíduo se constitui em sujeito, para resolver suas problemáticas, intervindo ele mesmo como elemento e dimensão do mundo. O sujeito pode ser concebido como unidade do ser enquanto vivente individuado e enquanto ser que se representa sua ação através do mundo como elemento e dimensão do mundo.
Em seguida, vem a individuação coletiva, o grupo. O coletivo intervém como reslução da problemática individual, o que significa que a base da realidade coletiva está já parcialmente contida no indivíduo, sob a forma da realidade pré-individual que permanece associada à relidade individuada (27).
Em resumo, na concepção de Simondon, o devir é uma dimensão do ser, não algo que viria se acrescentar a ele. Assim, as noções de susbtância, forma e matéria são substituídas pelas de informação primeira, ressonância interna, potencial energético e ordens de grandeza.
Claro, essas rápidas notas não chegam nem a riscar a superfície das riquezas que o primeiro volume da monumental obra contém. O capítulo em que Simondon analisa os pressupostos ocultos responsáveis pelo êxito da teoria hilemórfica durante séculos a fio (em sua análise da cultura escravagista da Antigüidade) é absolutamente brilhante. Numa espécie de genealogia à la Nietzsche, ele atribui o paradigma a uma visão técnica (mas que no fundo é social) baseada numa ordem hierárquica de quem comanda (o mestre) e quem executa (o escravo) o trabalho. Daí, também, a valorização da alma em detrimento do corpo. Steven Shaviro oferece uma excelente síntese das duas obras aqui e aqui.
Simondon não constitui parte do meu atual projeto de pesquisa (desenhar uma cartografia epistemológica da cibercultura a partir, neste momento preciso, das teorias alemães da mídia). Contudo, é um pensador que deve ser estudado em toda tentativa de revisão histórica e arqueológica da tecnocultura contemporânea. Ao lado de Heidegger, ele forma uma espécie de diagrama histórico para o entendimento da cibercultura. Em breve, mais sobre Simondon.